Como se toca o Choro?

Por Daniel Dalarossa
A execução do Choro difere da execução da música clássica, em que a partitura é seguida com grande nível de exatidão.

Numa Roda de Choro, uma característica importante é a liberdade dada ao solista para conferir sua própria interpretação à música que executa, não tendo necessariamente que seguir a partitura em todos os seus detalhes. Isso faz parte do espírito do Choro.
a) Interpretação ou improvisação ?
É de aceitação comum dizer-se que na forma mais tradicional de tocar o choro "interpreta-se" mais do que se improvisa.
Por interpretar queremos dizer que o solista se atém mais à melodia principal, mas faz alterações na divisão rítmica do solo e até insere ornamentos como trilos, mordentes, glissandos e frulatos. Na forma mais moderna de se tocar o Choro, talvez influenciada pelo jazz americano, o solista utiliza mais recursos de improvisação, em muitos casos substituindo totalmente segmentos da melodia original por uma melodia diferente, mas sempre seguindo a harmonia da música.
Um exemplo de interpretação:
- "Catita" de Chiquinha Gonzaga, por Harvey Wainapel, compassos 1 a 17. Compare com o original.
Um exemplo de improvisação:
- "Não Insistas, Rapariga!", de Chiquinha Gonzaga, por Nailor Proveta, compassos 5 a 12. Compare com o original.
O quanto se mantém da melodia original quando se sola fica a cargo de cada um, mas com certeza os extremos podem ser desagradáveis.
b) Cuidado com os extremos ...
- tocar um Choro seguindo todos os detalhes da partitura de forma exata - até mesmo nas repetições - pode demonstrar falta de criatividade do solista;
- tocar um Choro com improvisações do começo ao fim (sempre seguindo a harmonia), pode confundir o ouvinte, que talvez se questione ao terminar a  música "que choro foi esse que ele acabou de tocar?"
Como regra geral procure sempre mostrar o tema do choro como ele foi originalmente escrito (pelo menos uma vez em suas diferentes partes/repetições), e insira suas interpretações e improvisações de forma a não cansar o ouvinte. Lembre-se ainda, como sugerimos, de não se exceder na utilização de trilos, glissandos, frulatos e outros ornamentos.
c) "Mas eu não sei improvisar ..."
É comum ouvir de músicos em geral a frase "eu não sei improvisar ..." com o sentido de "eu não sei improvisar e, portanto, minha forma de tocar choro é pobre e limitada ..."
O fato de você não saber improvisar não vai absolutamente afetar a qualidade de sua interpretação. Antes de se preocupar com o aspecto de improvisação ou criação, verifique o seguinte:
- seu instrumento está bem afinado com os do Regional?
- você está conseguindo transmitir a emoção do choro à sua platéia, por intermédio de seu instrumento?
A questão da improvisação aparece como complemento até desejável de sua forma de tocar, mas não absolutamente necessário. Lembre-se que para improvisar você precisa seguir a harmonia da música, e para isso deve ter conhecimentos básicos de harmonia.
No entanto, nada o impede de fazer suas próprias criações, tendo por base a melodia principal, fazendo alterações na divisão rítmica e também inserindo ornamentos (veja item f. abaixo).
d) Devo tocar choro seguindo a partitura ou devo memorizar os choros e tocar sem partitura ?
Uma situação ideal seria o músico memorizar um determinado repertório de choros, mas também ter habilidade de leitura para tocar com a partitura quando for necessário.
Eu acredito que muito dessa questão tem a ver com a "zona de conforto" em que o músico atua, e com os "mecanismos de defesa" que ele utiliza para perpetuar sua permanência nessas mesmas "zonas de conforto". Por zona de conforto queremos dizer se o musico está acostumado a tocar lendo uma partitura ou a "tocar de ouvido". Em geral, a maioria dos músicos se enquadra em duas grandes categorias:
1) Os que não sabem ler uma partitura: muitas vezes estes criticam os que tocam choro lendo partitura, dizendo que "a partitura coloca uma camisa de forca no músico, que fica travado e sem liberdade para se expressar". Essa crítica, na verdade, pode ser um mecanismo de defesa que o músico usa para permanecer em sua "zona de conforto", que é tocar sem partitura. Se a partitura de um novo choro for colocada à sua frente, ele não vai conseguir tocar, porque não consegue ler música.
Sim, é perfeitamente possível (embora muitas vezes não seja prático, veja a seguir) tocar choro lendo uma partitura, expressando-se de forma fantástica e até fazendo improvisações.
Um outro problema sério que pode ocorrer com aqueles que tocam de ouvido é a possibilidade de tocar determinada passagem do choro de "forma errada". Ora, como só conseguem tocar se ouvirem alguém tocando antes (ou com base em uma gravação, ou apresentação ao vivo), acabam copiando a mesma interpretação que um outro músico tenha dado no momento em que gravou ou executou a dada música. A interpretação pode ter incorporado uma pequena criação que o músico acaba copiando e utilizando pela vida inteira, imaginando fazer parte da melodia original.
A sugestão é que se aprenda teoria musical, não necessariamente para ser fluente na leitura e ser capaz de tocar à primeira vista qualquer música, mas principalmente para atingir uma "independência", que vai permitir ao músico corrigir possíveis vícios ou passagens erradas nos choros que ele toca. O músico pode, com calma, ler como o choro foi originalmente escrito e, no mínimo, ter a opção de usar a passagem original ou criar algo próprio.
2) Os que somente tocam com uma partitura à frente: aqui o mecanismo típico de defesa criado é: "eu tenho coisa mais importante na vida pra fazer do que ficar decorando choro. Eu não tenho paciência pra isso. Aliás, eu tenho centenas de partituras de choro em casa ... é humanamente impossível decorar tudo. Quando eu preciso, pego a partitura que quero, e a utilizo na minha apresentação ..."
A mesma observação se aplica aqui: o músico pode estar tentando perpetuar seu modo de ser e manter-se dentro de sua zona de conforto, que é só tocar lendo uma partitura (porque essa forma de tocar vicia). Se no meio de uma apresentação, digamos ao ar livre, um vento bater e sua partitura voar, o músico provavelmente estará em apuros ...
Foi exatamente isso que aconteceu comigo quando, aos 20 anos de idade, fui tocar pela primeira vez num palco montado na calçada, no Clube do Choro da Rua João Moura (Pinheiros, São Paulo), com mais de 200 pessoas na platéia. Eu só tocava choro lendo partitura, e usava a frase defensiva citada cima sempre que questionado "porque você não toca sem partitura?".  No meio do choro "Na Madrugada" do Portinho, um vento cruel bateu e levou as partituras do choro para bem longe. Alem de criar um fator de distração para o público, pois agora todos queriam ver aonde as partituras iriam aterissar ..., meu desempenho foi obviamente afetado.
Coincidentemente na mesma época, assisti um concerto da Orquesta Sinfônica Estadual de SP com três solistas da Europa, interpretando um concerto de Vivaldi para 3 violinos. Tocando ao ar livre (Parque Ibirapuera), em determinado ponto da apresentação, o vento levou as partituras das 3 solistas, criando uma tremenda distração para o público, e afetando a performance como um todo da orquestra.
Outros problemas práticos: o músico que precisa das partituras para tocar choro tem que carregar uma estante e suas partituras para todo lugar, ficando dependente desses elementos. Se esquece a estante, tem que improvisar uma cadeira na roda de choro para colocar a partitura ... as coisas começam a ficar complicadas.... Outro mecanismo de defesa usado por quem toca com partitura: "não consigo decorar choro tocando sozinho ... não tem graça... eu preciso de acompanhamento...". Esse argumento já está ficando cada vez mais fraco com a Choro Music produzindo os álbuns play-along de choro....
Nossa sugestão para você que é "viciado" em tocar com partitura, é que comece  a montar o repertorio de choros que vai memorizar pouco a pouco. Lembre-se: não basta somente memorizar uma vez. Você será fluente à medida que praticar mais e mais. A vontade de pegar a partitura e ler vai existir até você "sair" dessa zona de conforto e sentir-se bem tocando sem a partitura. Coloque o CD da Choro Music no seu aparelho e saia tocando.
Se você é músico profissional e tem choros incorporados a suas apresentações, não tem desculpa: sua oportunidade de praticar já existe. Se você não é músico profissional, tem os songbooks da Choro Music para praticar, e pode repetir o choro quantas vezes quiser.
Um teste interessante para saber se realmente já memorizou um choro e está proficiente: se você conseguir ler um jornal ou assistir televisão enquanto toca o choro com um playback da Choro Music, então já tem a melodia perfeitamente memorizada em seu cérebro, que comanda os dedos automaticamente a tocar no andamento correto ...
Observe também que uma vez memorizado o choro, você inevitavelmente vai querer fazer modificações na melodia, caindo nos aspectos de interpretação e improvisação já citados acima. A situação de "sempre que toco um choro, toco de forma diferente" também pode valer para você ...
Um comentário final sobre esta questão: segundo Déo Rian, exímio bandolinista e conhecedor da vida e obra de Jacob do Bandolim, "Jacob dizia que o choro na primeira vez deveria ser tocado como o autor fez e nas repetições poderia se improvisar. Ele dizia que o verdadeiro e autêntico chorão era aquele que decorava a música e em seguida dava a sua interpretação."
e) Uso das oitavas da flauta no choro
f) Cuidados com a divisão rítmica ...
Temos observado que ao tocar choro, músicos com formação clássica seguem exatamente o que a partitura indica. Devemos tomar cuidado para que o resultado geral não saia "amarrado" ou até "quadrado".
Um exemplo típico é a "síncopa característica", que é definida como a seqüência semicolcheia/colcheia/semicolcheia".
No mundo do choro, ela é frequentemente tocada como tercinas colcheia/colcheia/colcheia, ou então semicolcheias são inseridas no compasso, adiantando o tempo e mudando um pouco a divisão rítmica.
Para efeito de ilustração, vamos considerar o choro "Brejeiro", de Ernesto Nazareth. Se tomarmos somente um fragmento do choro, digamos os compassos 36 a 52, eles foram originalmente escritos da seguinte forma:

 
1) Se tocarmos exatamente como indicado na partitura, vamos obter o seguinte resultado:
- "Brejeiro" original
Com certeza está faltando algo na execução, a chamada "ginga" do choro.
2) Agora vamos fazer pequenas alterações nas síncopas características e em algumas colcheias, com o objetivo de deixar a execução menos "presumível" e mais "redonda":
- Interpretação 1 de "Brejeiro"
A execução acima seria indicada da seguinte forma:


3) Podemos incrementar ainda nossa interpretação, inserindo ornamentos e alterando ainda mais a divisão rítmica.
- Interpretação 2 de "Brejeiro"
Aqui está a escrita musical para documentar nossa interpretação:


Observe que nas duas interpretações acima, todas as notas da melodia original foram mantidas.

Foram somente alteradas a divisão rítmica e inseridos ornamentos.
Observe também que os dois exemplos acima são apenas duas pequenas ilustrações de como o choro tocado difere da linguagem escrita. Poderíamos construir dezenas de outros exemplos com base nesse mesmo trecho musical.
Essas pequenas alterações nas divisões rítmicas dão um outro sentido à interpretação do músico.
"Então qual a regra para a execução das síncopas características?"
A regra é você estar livre para criar sua própria divisão rítmica.A melhor forma de assimilar a ginga do choro é ouvir os grandes mestres. Jacob do Bandolim é, provavelmente, o melhor exemplo nessa área. Ele constantemente alterava a forma de tocar o mesmo choro (principalmente no que se refere à divisão rítmica). O site www.ims.com.br (na seção "acervos e pesquisas") possui um excelente acervo musical com gravações dos mestres do choro dos últimos 100 anos.
g) Observações finais

É comum o chorão aperfeiçoar uma dada improvisação ou criação já ensaiada e tocada muitas vezes em sua vida musical, até incorporar a frase a seu repertório e consagrá-la como sua “marca registrada”.

O grande flautista Altamiro Carrilho tem uma posição muito interessante e particular no que tange a esse aspecto do Choro: “Gosto muito de improvisar! Não toco nenhuma frase repetida, cada vez que toco é uma frase diferente." (www.altamirocarrilho.com.br)

Com relação às gravações de choros feitas para os álbuns da Choro Music, todos os artistas convidados recebem uma orientação para a condução de suas interpretações. Para evitar a possibilidade de alguém ouvir a execução (principalmente uma pessoa que nunca ouviu Choro), e questionar:

“ - Mas a música que estou ouvindo não tem nada ou muito pouco a ver com a partitura publicada!”, orientamos os solistas que gravaram as faixas de referências dos álbuns da Choro Music no sentido de executar cada parte do Choro em questão seguindo a partitura o mais próximo possível na primeira vez que tocaram e, na repetição, dar sua própria interpretação (que incluiu ou não improvisação). Se uma dada parte não se repetiu, então os solistas ficaram livres para executá-la da forma como bem entendessem.

Acreditamos que esse contraste na execução de passagens que se repetem vai permitir ao iniciante no Choro entender como a execução típica do Choro difere da execução da partitura original criada pelo autor, quando seguida em seus detalhes (situação que ocorre na música clássica).

Ouça os fragmentos de Choros abaixo para ter uma idéia de como são esses contrastes entre passagens:

Exemplo de “Brejeiro” (Ernesto Nazareth) solado no Bandolim por Izaías Bueno:
- execução seguindo partitura
- interpretação
Exemplo de “Está Chumbado” (Ernesto Nazareth) solado em sax alto por Mário Sève:
- execução seguindo partitura
- interpretação
Exemplo de "Sururu na Cidade" (Zequinha de Abreu) solado no Bandolim por Aleh Ferreira:
- execução seguindo partitura
- interpretação
 Recomendamos a leitura do artigo a seguir, que cobre muitos outros aspectos da execução do choro. Clique AQUI para ler.
Veja a seguir algumas opiniões sobre o assunto:
“O fraseado Europeu que deu origem ao Choro foi se modificando à medida que a música se expunha à dança, sempre se adaptando aos novos gingados do brasileiro [...] Com relação às partituras, pode-se dizer que “o que se escreve nem sempre é o que se toca”: cada gênero tem seu estilo e no choro - por ser uma música de muitas variações, contrapontos, melodias ricas e extensas, convenções rítmicas, e que abrange também um universo grande de estilos (valsa, polca, schottische, maxixe, samba, etc.), dentro de um período de mais de um século - é realmente difícil que um simples papel consiga traduzir toda sua riqueza. É sempre importante para o músico um conhecimento amplo de seu repertório e ficar, assim, muito à vontade e criar em cima da partitura que o guia.“
Mário Sève (flautista, saxofonista, compositor e arranjador), texto extraído de seu livro “Vocabulário do Choro, Estudos e Composições” (Editora Lumiar, ISBN 85-85426-48-9), um dos mais completos e importantes trabalhos já realizados sobre o fraseado do Choro.
“[...] É sempre bom lembrar que no Choro, aliás como em toda a música popular brasileira, o espírito de liberdade e a criatividade são elementos essenciais, fundamentais. Na música, como na dança, o brasileiro sempre expressou plenamente sua vocação para a liberdade.
O maestro Radamés Gnattali, outra personalidade importantíssima em nossa história, conta que certa ocasião, durante um ensaio, ouviu Pixinguinha tocar seguidamente, dezenas de vezes uma mesma música, brincando e improvisando de tal forma que, sendo a mesma, era cada vez uma nova música, e sempre linda.“

Toninho Carrasqueira (Flautista, Pesquisador, Professor da Universidade de São Paulo), texto extraído de “O melhor de Pixinguinha”, Irmãos Vitalle, ISBN 85-85188-54-5.
“Tocar choro é uma coisa da alma, é antes de tudo um estado de espírito. É um processo de mistura de sotaques, derivado das etnias de diversos povos a partir dos mesmos elementos culturais, mormente de danças européias (destaque para a "polca"), somadas ao sotaque do colonizador e outras influências - a índia e a negra. As diferenças rítmicas são oriundas de cada colonizador - o francês, o espanhol, o inglês, o alemão, etc. Assim, ao observarmos um maxixe (Brasil), ou uma rumba ou salsa (Cuba), um ragtime (EUA) e todo e qualquer ritmo dançante, notamos que são adaptações da polca. No Brasil, preponderou o choro, o samba, o maxixe, o schottische, a modinha (essas últimas de cunho mais sentimental), etc.

Com referência ao choro "de roda" (na minha mais modesta opinião), tocá-lo significa desprender-se de partituras e de outros dogmas que venham contrariar um determinado estado de alma de seus participantes - significa que se possa ter liberdade de improvisação e de fazer as tão conhecidas "provocações" aos parceiros, quer sejam harmônicas, rítmicas ou melódicas, transformando-se tudo numa contagiante união de surpresas, de maldades (no bom sentido). Já assisti a uma "roda" com Jacob do Bandolim (com quem aprendi muito), na qual ele tocou o "Bole-Bole" (samba de sua autoria) por nada menos que 45 minutos com improvisos variados - cada qual mais bonito que o outro, ou chegar a tocar uma valsa, quando os mais sensíveis não conseguiam esconder as lágrimas. Tudo isso eu acho que é tocar choro, coisa que não temos mais visto nas apresentações de novos chorões, que estão mais preocupados em demonstrar velocidade - e pasmem! - tenho até medo que algum pseudo-chorão possa algum dia lançar o "choro-rock" - não é nada difícil. Que Deus nos proteja desses incautos”.
Izaías Bueno (Bandolinista, pesquisador e arranjador)




Comentários

  1. Olá senhores...

    É um grande prazer para um estudante iniciante nesse nosso lindo Chorinho, encontrar o suporte que vocês nos proporcionam.

    Contudo, nesta excelente matéria, super didática postada aqui: http://www.confrariasambachoro.com.br/2010/08/como-se-toca-o-choro.html

    Os links para os áudios e melhor compreendermos as comparações, que nos remetem a este website estão todos "quebrados"...

    Como a matéria é de extrema colaboração para os iniciantes, gostaria muito de saber aonde encontro os áudios que o generoso autor cita?

    Muitíssimo agradecido,

    Um animado e esperançoso aprendiz!

    Marcio Giudice

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